As cidades sempre contaram histórias. Mas, nos últimos anos, o desenho urbano passou a contar uma narrativa mais silenciosa — e muitas vezes cruel. A chamada arquitetura hostil é uma prática que, embora disfarçada de organização estética ou funcionalidade, tem o objetivo claro de expulsar, inibir ou controlar determinados grupos sociais nos espaços públicos.
De encostos inclinados em bancos de praças a estruturas pontiagudas embaixo de viadutos, o ambiente urbano está sendo moldado para dizer, sem palavras: “você não é bem-vindo aqui”.
O que é arquitetura hostil e por que ela é preocupante?
A arquitetura hostil, também chamada de “arquitetura defensiva” ou “arquitetura excludente”, refere-se ao uso intencional de elementos urbanos para restringir o acesso ou permanência de pessoas indesejadas em determinados espaços. Geralmente, esses “indesejados” são pessoas em situação de rua, jovens periféricos, skatistas, ciclistas ou qualquer grupo que não se encaixa no ideal normativo de quem deve ocupar o centro das cidades.

O arquiteto e urbanista Pedro Fiori Arantes, professor da Unifesp e pesquisador de políticas públicas e moradia, afirma que essa estratégia traduz uma “lógica de higienização urbana”. Para ele, “há uma tentativa constante de manter a cidade ‘limpa’ para o consumo, para o turismo, mas invisibilizando os sujeitos que estão à margem da lógica mercadológica dos centros urbanos”.
A sutileza da exclusão: como a hostilidade se disfarça no mobiliário urbano

Na paisagem urbana brasileira, a hostilidade raramente se apresenta de forma explícita. Ao contrário: ela se mascara de design moderno, segurança ou conservação. Bancos públicos com divisórias no meio impedem que alguém se deite; calçadas com pedras irregulares afastam skatistas; grades pontiagudas sob marquises impedem que pessoas se abriguem da chuva. São estratégias duras com os corpos, mas suaves com os olhos.
A professora Carolina Valansi, aponta que o desenho da cidade revela quem ela quer acolher. “Quando se instala um banco desconfortável, não é só uma escolha estética: é uma mensagem. A arquitetura tem linguagem, e muitas vezes essa linguagem é de negação”, pontua.
Direito à cidade e o apagamento da coletividade
A discussão sobre arquitetura hostil não é apenas estética ou funcional — ela toca diretamente no conceito de direito à cidade, proposto pelo filósofo Henri Lefebvre. O direito à cidade inclui o acesso, o pertencimento e a possibilidade de participar plenamente da vida urbana. Quando certos corpos são afastados, a cidade perde sua pluralidade, e o espaço público se torna um ambiente de controle e exclusão.
O problema se agrava porque esse tipo de arquitetura raramente é debatido com a sociedade. As decisões são tomadas por empresas privadas ou por gestores públicos que, muitas vezes, preferem eliminar o “problema visual” do que encarar questões estruturais como moradia, acolhimento ou políticas sociais.
Entre segurança e exclusão: onde está o equilíbrio?
Defensores da arquitetura defensiva argumentam que ela ajuda a reduzir comportamentos considerados indesejados, como vandalismo ou consumo de drogas. Mas a linha entre segurança e exclusão é tênue — e, muitas vezes, ultrapassada sem debate. Ao invés de soluções humanas, o que se oferece é um urbanismo punitivo, que criminaliza a existência de corpos fora do padrão.

“É mais fácil colocar pedras embaixo de um viaduto do que investir em moradia popular”, critica Pedro Arantes. “Mas esse tipo de resposta não resolve nada. Só empurra o problema para o próximo quarteirão.”
Um convite à empatia e ao planejamento urbano mais inclusivo
A arquitetura tem o poder de acolher, proteger e integrar. Mas, quando usada de forma hostil, ela também é capaz de excluir, repelir e reforçar desigualdades. Para reverter esse quadro, é urgente que o urbanismo deixe de ser uma ferramenta de exclusão e passe a dialogar com as demandas reais da população.
Arquitetos, designers e gestores públicos precisam reconhecer que cada banco, cada calçada, cada marquise carrega um discurso. E que o espaço urbano deve refletir não só uma estética idealizada, mas também a complexidade e diversidade de quem o habita.
Como lembra Carolina Valansi, “uma cidade boa é aquela que abraça seus moradores — todos eles, sem exceção”.